Cónego Manuel das Neves um Religioso ou um Político

Sobre o 4 de Fevereiro;

Cónego Manuel das Neves: Um religioso ou um político?

Por Ruben Sicato, Ministro da Saúde do GSU e membro da Comissão Política da UNITA

Em 2017, sob a chancela da editora Nova Vega Lda, José Manuel da Silveira Lopes publicou uma excelente biografia política que vale a pena ler. É desse livro que extraio os elementos que se seguem:

Manuel Joaquim Mendes das Neves foi ordenado padre em 1918 e tornou-se cónego penitenciário da Sé de Luanda a 23 de Dezembro de 1932. Porque era uma figura de enorme prestígio, em Maio de 1950, a Santa Sé concedeu-lhe a dignidade de Prelado Doméstico com o título de Monsenhor.

De 1945 a 1947, foi membro do Conselho do Governo Geral de Angola, órgão consultivo para o qual foi nomeado, uma vez que era bem considerado entre os negros assimilados de Luanda. Nessa função, notabilizou-se pelos apelos que fez a favor da melhoria das condições de vida dos negros. O cónego Manuel das Neves era “uma via para a expressão do descontentamento” que se vivia naquele tempo em Angola e, nesse papel, a 7 de Dezembro de 1946, chegou a escrever uma carta a Salazar.

Desde os anos 30, apoiou e inspirou a actividade da Liga Nacional Africana a que presidiu em 1947. Por seu intermédio, a Liga se constituiu num centro de convívio entre católicos e protestantes. De 1955 a 1958, foi membro do Conselho Legislativo de Angola, para o qual foi nomeado pelo governo colonial português.

De 3 a 5 de Outubro de 1959, realizou o I Encontro dos Ex-Seminaristas Residentes em Angola, cujo objectivo declarado era o de criar uma associação, mas que – na realidade – serviu para uma troca de ideias revolucionárias pró-independentistas.

Monsenhor Manuel das Neves realizou vários contactos internacionais, os quais reforçaram as suas ideias nacionalistas e permitiram transmitir ao mundo o que se estava a passar em Angola sob o regime colonial português. São exemplos: os contactos com Adlai Stevenson, candidato democrata às eleições presidenciais americanas; os contactos com a OIT (Organização Internacional do Trabalho); os contactos com o Comité Americano para África; e os contactos com emissários provenientes da Conferência Pan-Africana de Acra de 1958.

Monsenhor Manuel das Neves era um homem da UPA (União das Populações de Angola) de Holden Roberto, onde tinha o cognome de Makárius, em alusão ao arcebispo Makarius que foi impulsionador da independência do Chipre. Os seus pares e confidentes preferiam chamar-lhe Lumumba, em alusão ao famoso político revolucionário congolês.

A sua filiação na UPA teria começado a partir de um contacto que teve em 1954 com Manuel Barros Sidney Nekaka, tio materno de Holden Roberto. Nekaka teria vindo a Luanda para implantar células da UPA e uma das células teria sido a do cónego Manuel das Neves. Monsenhor das Neves teria recebido o cartão da UPA em 1960. Já preso em Portugal, o cónego Manuel das Neves foi nomeado por Holden Roberto, Presidente da FNLA, para a função de Vice-Presidente do GRAE (Governo Revolucionário de Angola no Exílio).

A actividade nacionalista de Monsenhor Manuel das Neves era feita durante as pregações, mas também ao nível de vários contactos de que uma boa parte ocorria na Sé de Luanda ou no Seminário. Uma informação da PIDE relativa ao final de 1959, dizia que “em Luanda, corre o boato de que se efectuam reuniões políticas para a independência de Angola, sendo os seus “cabecilhas” o cónego Manuel das Neves e o Padre Joaquim Pinto de Andrade”.

A 22 de Março de 1961, Manuel das Neves foi preso pela PIDE, acusado de ser o principal instigador da revolta do 4 de Fevereiro desse ano. Monsenhor era ainda acusado de guardar armas na Igreja e de ser o tesoureiro da UPA, pois mandava dinheiro recolhido dos simpatizantes, para a sede da UPA em Kinshasa.

Quando foi preso, o cónego Manuel das Naves era pároco da Igreja dos Remédios, director do Seminário Católico de Luanda, Deão do Cabido da Sé e Vigário da Arquidiocese de Luanda. Ou seja, ele era a segunda figura mais importante da Igreja Católica, a seguir ao Arcebispo de Luanda, D. Moisés Alves de Pinho.

De Luanda, o cónego foi transferido para a prisão do Aljube e a partir de 18 de Agosto de 1961, por despacho do Ministro do Ultramar, foi desterrado para o Seminário do Soutelo, em Braga. Aí morreu, isolado, em 11 de Dezembro de 1966, aos 70 anos de idade. Diz-se que só a PIDE assistiu ao seu funeral e esconderam mesmo a sua campa. Os seus restos mortais foram transladados para Angola em 1994, estando sepultado no Cemitério do Alto das Cruzes.

Joaquim Pinto de Andrade disse que o cónego Manuel das Neves “era um nacionalista ferrenho e forte”.

Mário Pinto de Andrade, o primeiro Presidente do MPLA, disse que quando o conheceu, “o cónego tinha já as suas ideias nacionalistas. Exprimia-as de maneira muito doce.”

Após a independência, na primeira comemoração que se fez do 4 de Fevereiro, o Comandante Paiva Domingos da Silva teria dito que “o cónego Manuel das Neves foi quem tinha dado a ordem” da insurreição.

É consensual: o trabalho de Monsenhor Manuel das Neves foi de uma importância vital para o desenvolvimento da consciência política angolana face aos desafios da independência nacional.

Após a leitura desses resumidos traços biográficos, é de perguntar:

  1. O cónego Manuel das Neves era um homem religioso ou era um quadro político? Não poderia ser as duas coisas ao mesmo tempo?
  2. Por o cónego Manuel das Neves ter sido religioso não se deveria envolver nessas actividades políticas?
  3. Porque é que há pessoas que hoje condenam os bispos católicos de defenderem maior lisura ao processo democrático angolano, mas as mesmas pessoas não condenam Monsenhor Manuel das Neves por claramente se ter envolvido em actividades políticas sem ter despido primeiro as suas batinas?
  4. Será que essas pessoas acham que se deve diferenciar actividades políticas pré-independência de actividades políticas pós-independência? Será que, conseguida a independência, os governantes não podem ser criticados? Após a independência a única postura aceitável para os bispos católicos bispos é ficar calados porque agora quem governa são os angolanos?

Não e não! Os bispos católicos têm sim legitimidade para criticar o poder em Angola e essa legitimidade tanto era válida ontem, como é válida hoje e continuará válida amanhã, seja quem estiver no poder. É assim que eu penso.

 

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