Estivemos lá, não porque participámos, mas, porque acompanhámos. Seguimos os bastidores com bastante interesse e entusiasmo, não como diplomatas, mas como estudantes bolseiros da UNITA que exerciam uma dupla função: por um lado, formar-se no âmbito do programa de investimento na formação de quadros em que a Direcção, na pessoa do Dr. Savimbi, apostara; por outro, enquanto jovens angolanos e membros da JURA, empenhados na sua missão de mobilização da comunidade angolana em Portugal e não só, passando a mensagem sobre as razões da nossa luta; pois, o futuro mostrava-se promissor para o desfecho de um processo conducente à verdadeira paz para os angolanos.
Os acontecimentos e os fenómenos políticos, enquanto objecto de estudo das Relações Internacionais, não devem ser analisados isoladamente. Assim, no âmbito da política internacional, a Guerra Fria já ia dando os últimos suspiros e, consequentemente, o sistema socialista prestes a sucumbir, acabou por abanar o regime de partido único, vigente em Angola.
É neste ambiente em que surge o primeiro encontro oficial entre Jonas Savimbi e José Eduardo dos Santos em Gbadolite, em Junho de 1989, cujas exigências entre as partes pareciam difíceis de conciliar. Em Novembro do mesmo ano cai o Muro de Berlim, produzindo uma sequência de acontecimentos a nível mundial, ao estilo de um verdeiro efeito dominó, cujo puzzle viria a completar-se com a dissolução da União Soviética em Dezembro de 1991 e o consequente aumento de Estados independentes e soberanos no Sistema internacional.
Consequentemente, Bicesse viria a constituir-se no segundo encontro oficial entre as duas partes beligerantes que tentavam a reconciliação nacional, promovida por Portugal, com mediação dos Estados Unidos e da União Soviética.
Os Acordos de Bicesse previam, entre vários aspectos, eleições multipartidárias que viriam a acontecer em 1992.
No entanto, o nosso propósito não é fazer uma análise descritiva, muito menos histórica dos Acordos de Bicesse em si, mas sim, trazer uma reflexão sobre o processo de reconciliação angolano, que, de certa forma, insere-se no conjunto de Acordos, Pactos, Plataformas, Cimeiras e Memorandos de Entendimento, que se foram sucedendo ao longo do conflito interno.
Não menos importante será referir que, segundo especialistas na matéria, do fim do conflito angolano, também dependia a pacificação da África austral, nomeadamente o fim do regime do Apartheid na África do Sul e a independência da Namíbia, numa espécie de linkage politics (abordagem da política externa americana, muito utilizada durante a Guerra Fria, por Richard Nixon e Henry Kissinger na década de 70, que estabelecia uma relação entre progressos e desfechos de conflitos de natureza política e militar em diferentes zonas do mundo).
E agora para entrar no cerne da Reconciliação Nacional – apesar de Bicesse não ter sido a primeira tentativa de paz, ainda assim tornou-se uma grande referência, por causa das expectativas que o mundo havia depositado no Processo de Paz em Angola – Gbadolite, “o bolo envenenado”, tinha sido um fracasso, dada a natureza das exigências por parte do Governo, contidas na denominada “solução africana” e as posições inflexíveis e incompatíveis de ambas as partes; ao passo que Bicesse trazia uma luz no fundo do túnel e uma esperança que cedo se desvaneceu, com os massacres dos negociadores da Paz, em finais de 1992. Paz, que segundo Santo Agostinho, “é o fim prosseguido pela guerra, pois todo o homem procura a paz quando faz a guerra…” Neste caso concreto, aconteceu o inverso.
A ideia da reconciliação está associada à paz, ao amor, à compaixão, ao perdão e à harmonia, valores da dimensão vertical do Cristianismo, referentes ao plano das relações do Homem com Deus. Tudo isto, longe de julgamentos e de condicionalismos humanos.
Daí decorre que a reconciliação não pode ser vista como algo exterior, apenas para o mundo apreciar, mas sim, algo mais profundo e interior, que brota do sentir e do ser.
Os angolanos precisam e merecem muito mais do que aquilo que se tem feito no âmbito da CIVICOP, cujo lema é “Abraçar e Perdoar”. Não é que o lema seja mau, até é sugestivo; simplesmente, o “modus operandi” não tem representado, nem alcançado a dimensão destas palavras, fazendo das famílias, muitas vezes, vítimas e reféns de um processo desenhado à base da necessidade de satisfazer egos e interesses pessoais e inconfessos, que se sobrepõem à ideia de harmonização dos espíritos e da sociedade.
Se o objectivo é reconciliar as almas, aplacar os ânimos, acalmar e atenuar a dor, então a metodologia e o cenário que antecede e envolve o processo em si, devem ser revistos e alterados; pois, se assim não for, de nada valerá a pena tentarem convencer os angolanos e o mundo, que se está a agir de boa fé.
Falo por experiência própria e não desejo a ninguém o que passei aquando da entrega das ossadas do meu irmão.
Quem abraça não impõe, não condiciona, não impressiona e quem perdoa não dita regras e não julga.
A reconciliação entre os angolanos tem de ser mais verdadeira, mais profunda e livre de manipulações e aproveitamentos políticos.
Desejo às famílias que estão neste processo, ou que venham embarcar nele, melhor sorte do que a minha.
A reconciliação não é manipulação, não é imposição, não é exibição, nem é exposição; a reconciliação implica respeito mútuo e dignidade. Não é para ser aplaudida, mas sim, sentida, e deve ser liberta de manobras e programas calculistas.
A paz que vem do calar das armas negocia-se; mas a reconciliação que resulta do apaziguamento das almas é incondicional, inegociável e desinteressada.
Que DEUS, o dador da vida, seja o verdadeiro conciliador da “alma angolana”, tarefa que jamais estará ao alcance dos simples mortais com responsabilidades públicas, que nem sequer a paz material conseguem assegurar.
Luanda, 30 de Maio de 2025
Por: Alice Sapalalo Chivemba